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Brasil

“Ações de enfrentamento à pandemia devem considerar condição de vida e saúde de negras e negros”, diz sanitarista à ONU Mulheres Brasil



19.05.2020


Conforme Karine Santana, determinantes sociais vinculados ao racismo vulnerabilizam a “população negra que está majoritariamente nas periferias vivendo em imóveis insalubres, amontoados, com elevado número de pessoas por cômodos, sem saneamento, sem acesso à água, com seus chefes de família trabalhando na informalidade e sem poder prover as suas necessidades”

 

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Karine Santana é docente de Saúde Coletiva,doutoranda em Medicina e Saúde na Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia e pesquisadora no Núcleo de Estudos e Pesquisa em Gênero, Raça e Saúde (NEGRAS)
Foto: Acervo Pessoal

 

Faz mais de 60 dias que a Organização Mundial de Saúde classificou o novo coronavírus Covid-19 como pandemia, em 11 de março de 2020, instaurando alerta internacional em favor da saúde coletiva para responder à possibilidade de colapso dos serviços de saúde por conta do contágio e à alta de letalidade decorrente da doença. Nove dias depois, em 20 de março, o Congresso brasileiro decretou estado de calamidade pública decorrente da pandemia.

No início de abril, os primeiros dados passaram a revelar o impacto da pandemia entre a população negra. O Ministério da Saúde revelou, em 10 de abril, que brancos e brancas eram 73,9% entre as pessoas hospitalizadas com Covid-19, mas 64,5% entre as mortas. Negras e negros representavam quase 1 em cada 4 (23,1%) das pessoas hospitalizadas com Covid-19, mas chegavam a 1 em cada 3 entre as pessoas mortas infectadas pelo novo coronavírus (32,8%). No início de maio, levantamento da Agência Pública apontou que a quantidade de pessoas negras que morrem por Covid-19 no Brasil quintuplicou.

Em entrevista à ONU Mulheres Brasil, a sanitarista Karine Santana avalia a situação da pandemia Covid-19 no Brasil, o racismo na saúde e as comorbidades da população negra. as medidas precisam ser pautadas na equidade. Qualquer medida distante disso está acirrando a existência do racismo estrutural. Docente de Saúde Coletiva, ela é doutoranda em Medicina e Saúde na Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia e pesquisadora no Núcleo de Estudos e Pesquisa em Gênero, Raça e Saúde (NEGRAS).

ONU Mulheres Brasil – Como você avalia a pandemia e a capacidade de resposta do Brasil à população, composta, em sua maior parte, por negras e negros e por mulheres?

Karine Santana – Estamos diante de uma grave crise sanitária. A pandemia da COVID- 19 convoca a sociedade e as autoridades para um nível de reflexão bem ampliado. Com esta situação, há a oportunidade de se retomar o debate acerca do nexo entre o conceito e a prática das ações no que tange à efetivação da chamada saúde global. Os acordos internacionais apontam para uma atenção especial à barreira das doenças infecciosas na chegada ao mundo ocidental. Existe uma agenda que negligencia a sua atuação conforme o território e população atingida, haja vista a prevalência de doenças como tuberculose, dengue, doenças de chagas, anemia falciforme, todas com um perfil populacional bem definido e, portanto, descartável. Urge uma mudança de conduta nestes acordos visto que as medidas de cuidado que envolve as ações de promoção e prevenção à COVID- 19 até o momento não são nenhuma novidade no que tange às doenças respiratórias, mas a sua efetividade está agora se deparando com as consequências do padrão de desenvolvimento neoliberal, discriminatório e excludente adotado pelos países. No Brasil, acredito que o padrão de desigualdade instituído será o maior desafio. Exigir o isolamento social, limitando o trânsito das pessoas, a lavagem das mãos e uso de álcool gel são medidas difíceis de ser garantidas quando constatamos por exemplo que, segundo a Síntese de Indicadores Sociais (SIS, 2018), 35,7% dos brasileiros não têm esgotamento sanitário, destacando que destes 63% destes estão concentrados nas regiões norte e nordeste. Outro dado é o fato de termos 3,3 milhões de brasileiros desempregados há mais de dois anos (IPEA, 2018), muitos atuando na informalidade precisando prover a suas famílias. Quando a avaliação das desigualdades é realizada pela perspectiva interseccional, sem a qual não é possível ter noção verídica do cenário, a população negra é quem historicamente detém os piores índices, sobretudo as mulheres negras. A população negra está majoritariamente nas periferias vivendo em imóveis insalubres, amontoados, com elevado número de pessoas por cômodos, sem saneamento, sem acesso a água, com seus chefes de família trabalhando na informalidade e sem poder prover as suas necessidades. Um cenário que reflete um descaso consciente com 54,9 % da população. O racismo estrutural evidencia o arcabouço de vulnerabilidade a qual a população negra está submetida, reafirmando que a determinação social do processo de saúde, adoecimento e morte está diretamente associado com a adoção do projeto de desenvolvimento pautado na necropolítica. Neste sentido, acredito que a contenção e resposta à pandemia está condicionada às respostas de ordem assistencialista e científica, porque no que depende do âmbito social estão ameaçadas.

ONU Mulheres Brasil – Como as doenças com prevalência na população negra a deixa mais vulnerável ao contágio?
Karine Santana – As doenças crônicas debilitam o organismo, sobretudo o organismo idoso. A população negra apresenta elevada prevalência para estas doenças como hipertensão, diabete e doença falciforme, por exemplo. No caso do paciente diabético é importante considerar o comprometimento do seu sistema imunológico, a sua capacidade de defesa já está comprometida. O vírus atua diretamente sobre o sistema cardiorespiratório, que no caso dos pacientes hipertensos já existe um comprometimento da sua capacidade fisiológica de resposta, isso agrava a dificuldade respiratória. A anemia falciforme, por exemplo, já produz a síndrome torácica aguda, que pode ser confundida com sintomas da COVID- 19 e levar pacientes para as emergências do SUS, exigindo, portanto, que os profissionais de saúde estejam atentos a seu diagnóstico diferencial. A Síndrome torácica por sua vez já deixa o indivíduo fragilizado em sua capacidade respiratória, a infecção pelo vírus iria potencializar esse quadro. Assim, cuidar da COVID-19 é cuidar da população negra, e, para isso, é preciso considerar suas condições de saúde. Isso remete a pensar as políticas públicas de intervenção e cuidado para esta população. Porque a ocorrência dos casos tem uma origem que não se inicia ou se justifica necessariamente pela condição de saúde, mas pelas condições às quais esta população está submetida como desemprego, má remuneração, má alimentação, baixa escolaridade e moradia comprometida, violência, uma lista de fatores suficiente para descompensar a pressão arterial de qualquer pessoa negra que nesse país viva.

ONU Mulheres Brasil – Como o racismo, já reconhecido no âmbito da saúde, pode ser acirrado na pandemia?
Karine Santana – A adoção de medidas de prevenção precisa ser pensada na condição de vida da população negra, que é maioria da população brasileira. Outra coisa, 80% da população negra é usuária do Sistema Único de Saúde, logo, as medidas precisam ser pautadas na equidade. Qualquer medida distante disso está acirrando a existência do racismo estrutural. Toda e qualquer ação deve ser pautada pela perspectiva interseccional, caso contrário, estará sendo reafirmada a política de morte, onde sabemos que os corpos negros são os que mais sofrem com as consequências de qualquer desordem seja social, econômica e política.

ONU Mulheres Brasil – Como o racismo deve ser enfrentado no contexto da pandemia e nas respostas do governo federal, estados e municípios?
Karine Santana – A partir do momento do reconhecimento do racismo por parte dos três níveis de governo, as ações de enfrentamento devem considerar a sua condição de vida e saúde. A partir daí elencar as prioridades. Algumas ações podem ser realizadas como pensar suporte financeiro sobretudo para mulheres negras, as quais são em sua maioria chefe de família e que historicamente ganham menos que os homens, assumir a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, considerando seus objetivos e sua marca, e assim exigir o preenchimento do quesito raça/cor nas fichas de notificação para uma avaliação histórica e viabilização de ações a curto e médio prazo, sensibilização dos profissionais de saúde para atentarem para o fortalecimento de uma prática com foco na equidade, considerando a análise de situação de saúde da população negra, fortalecer a atenção básica e assim rediscutir o subfinanciamento do SUS, estreitar a parceria com instituições de pesquisa e com os movimentos sociais, produzir um material de orientação para a população em específico para os idosos negros que possuem comorbidades.

ONU Mulheres Brasil – Nos EUA, os dados relacionados à mortalidade evidenciam mais óbitos de negras e negros. Este quadro pode se repetir no Brasil?
Karine Santana – Sim, acredito que este é o cenário que está posto. A população negra detém os piores índices de condição de vida e isso associado ao acesso deficiente e à qualidade inadequada no atendimento dos serviços de saúde é o que delineia a determinação social do processo de saúde, doença e cuidado. A população negra está submetida a um processo de vulnerabilidade em cadeia, é uma sucessão de negligências. Reforço aqui a importância de valorização e defesa do Sistema Único de Saúde, um sistema projetado para atender a todos em sua integralidade e especificidades, o qual está ameaçado, sofrendo sanções das políticas de austeridade que irão certamente culminar com um quadro nefasto de morbimortalidade caso intervenções urgentes não sejam realizadas. Acredito que esta seja uma realidade da saúde da população negra na diáspora.

Leia também as outras entrevistas com mulheres brasileiras na série “Vozes das Mulheres sobre Covid-19”:

22.04.2020 – Deputadas federais unem esforços e defendem direitos das mulheres na resposta do Brasil à pandemia Covid-19

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