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Brasil

“Enquanto eu não ver cada mulher falando por si, minha luta não acabou”, afirma a guarani nhandeva Andreia Lourenço



30.12.2015


Última da série de cinco entrevistas sobre o projeto Voz das Mulheres Indígenas, você confere o espírito crítico e aguerrido de uma das multiplicadoras mais jovens do projeto que aprende muito no diálogo com indígenas mais velhas e velhos no Sul do Brasil

Assista aqui a série de depoimentos de mulheres indígenas participantes do projeto Voz das Mulheres Indígenas no Youtube da ONU Mulheres Brasil

Confira aqui a galeria de fotos do projeto Voz das Mulheres Indígenas

 

“Enquanto eu não ver cada mulher falando por si, minha luta não acabou”, afirma a guarani nhandeva Andreia Lourenço/

Andreia Lourenço, 30 anos, é uma das 22 multiplicadoras do projeto Voz das Mulheres Indígenas e membro do Grupo de Referência da Região Sul
Fotos: Isabel Clavelin/ONU Mulheres

 

Fala apressada, voz de veludo e um misto de risos e hesitações. Com intensidade, Andreia resgata lenda, vivência intergeracional, mobilização política e reafirma o seu compromisso de lutar pelos direitos dos povos indígenas, especialmente o guarani nhandeva do Paraná.

“Minha vida inteira morei na aldeia. Saí de lá para fazer a faculdade de Secretariado Executivo Bilíngue Português-Inglês na Universidade Estadual de Londrina. Passei nove anos lá. A faculdade não ensinou, ela aprimorou. Procuro ajudar o meu povo. Sou aquela que busca informação para quem não saiu da base”, apresenta-se.

Os olhos de Andreia marejam quando ela lembra a colaboração de professoras e professores na validação de trabalhos sobre o seu povo, tarefa que, por vezes, compensava a ausência em aula em dia de reunião. “Tive filho no primeiro ano de faculdade. Costumo dizer que o curso foi o pai do meu filho, já que sou mãe solteira”, acrescenta. Os estudos também fizeram companhia na busca de Andreia sobre a história de seu povo além das fronteiras da aldeia Laranjinha, onde vivem 250 indígenas, nas imediações do município de Tomazina.

De criança, por volta dos oito anos, Andreia carrega as tristes lembranças de ver o pai, sendo expulso da aldeia por órgãos públicos e acusado de crimes. Na época, ele denuncia a agressores do seu povo. “Meu pai teve sorte de que não o mataram. Ele foi acusado de ser bandido, de estupro, para justificar o ato das pessoas a quem ele denunciava. Até hoje lembro de correr atrás da kombi, onde meu pai foi amarrado. Pedíamos para que o soltassem enquanto ele dizia que não tinha feito nada. Como diz a cacica Kerexu, para o guarani, palavra é ordem”, rememora Andreia. A cacica Eunice, conhecida como Kerexu Yxapyry, é uma referência em Santa Catarina, da Aldeia Morro dos Cavalos. Recebeu a Medalha Zumbi dos Palmares como reconhecimento às lutas contra o preconceito.

Resistência – “Antes de eu entrar no movimento, eu questionava: por que os guaranis não falam? Por que os guaranis não dão a cara à tapa? Mas depois que eu fiz o meu trabalho de conclusão de curso, percebi o sofrimento que tiveram. Pelo menos hoje eles vêm que estão aqui, que o sangue deles está aqui. Eles podem dizer que resistiram às atrocidades que foram feitas nesses 500 anos”, reflete. Mesmo diante das violências, ela mostra o aprendizado tradicional e acadêmico: “nada se perde, sempre tem alguém que sabe”.

Dentre os saberes adquiridos no final da faculdade, está a lenda do menino de ouro que levava os pescadores indígenas da margem para o fundo do rio. Num acerto com a espiritualidade Tupã Nhanderu, o rio transbordou a cabeceira, o povo guarani se deslocou e as mortes cessaram.

A tensão pessoal entre a suposta passividade guarani e o espírito de luta do povo vem sendo harmonizada com o tempo. “A gente não pode acusá-los de ter perdido a língua, porque a gente não sabe o que aconteceu. Eles não tinham muita alternativa. Ou eram submissos ou morreriam? Como lutar contra isso? Eu passei um pouco de sofrimento, mas teve gente que perdeu pai, perdeu mãe, irmãos. A história que se vê dos guaranis é a do sofrimento. E para encabeçar tal coisa, é preciso passar por cima do sofrimento e falar para si: se for para morrer, vou morrer lutando”, pontua.

 

“Enquanto eu não ver cada mulher falando por si, minha luta não acabou”, afirma a guarani nhandeva Andreia Lourenço/

À direita e no centro, Andreia participa de reunião do projeto Voz das Mulheres Indígenas, na Casa da ONU Brasil, em Brasília

Sentido na própria pele – Em 2013, numa das mobilizações, em Brasília, pelos direitos dos povos indígenas, Andreia foi atingida por uma bala de borracha na perna. “Quando cheguei no Paraná, minha perna estava preta. Pensei que fossem falar que bom que eu estava na luta pelo povo. Vi os guaranis falando: ‘nossa, você está na luta pelo nosso povo e sendo agredida’. Eu falei que acho que todo mundo faria isso se estivesse no meu lugar. Encontrei um senhorzinho que disse: ‘Olha, filha, tanta gente que vi morrer. Tanto parente meu que vi morrendo. E você está nisso, filha?’, disse com desânimo. Mas ele depois ele falou: ‘que bom que você está lá. Pelo menos a gente sabe que os guaranis não estão se calando diante das coisas que estão acontecendo’. Eu vejo que a história marca no olhar deles esse sofrimento”, pondera.

A opção pelo engajamento pelos direitos das mulheres ocorreu, em 2010, quando participou de um encontro no Sudoeste do Paraná e percebeu que as “coisas eram bem piores para elas”. Dali em diante, fixou-se nessa frente de atuação, antes dividida com o interesse na área de saúde e educação. “Foi aí que vi que queria ajudar que as mulheres falassem o que estão pensando e lutando pelos seus direitos”, justifica.

Articulação regional – Como multiplicadora do projeto Voz das Mulheres Indígenas e integrante do Grupo de Referência da Região Sul, Andreia nota que é preciso respeitar o tempo das mulheres. Como diz, “não é do dia para a noite que as coisas mudam”. Como única representante da região Sul na primeira reunião de convocação do projeto, ela assumiu a tarefa de conversar com mulheres dos povos Charruá, Kaigang, Guarani, Xetá e Xokleng no Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina.

Há pouco tempo, reencontrou dona Brasília, do povo Kaigang, indígena que vive no Rio Grande do Sul, quem Andreia admira por ter criado seis filhos. “Ela disse que estou melhorando. Falei sobre o projeto e ela me parabenizou. Disse que está disposta a ajudar”, conta. No processo da 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista, ela reforçou seu compromisso político para a conscientização de mulheres. “Encontrei uma senhora que não falava Português. Ela falou que estava tudo bem. Pensei que ela não sai da aldeia e não sabe o que está acontecendo. Com elas, precisamos ter mais tempo e mais calma, porque não estão vendo a atualidade. Cabe a gente, como referência e multiplicadora, levar as informações para as bases e atualizar o que está acontecendo”, afirma.

Perguntada sobre o futuro, ela revela o seu sonho no misto entre pessoal e coletivo, mas essencialmente político. “Meu sonho é ver cada mulher de cada etnia, de cada povo, de cada região falar por si. Enquanto eu não ver a autodeterminação e o empoderamento nelas, meu sonho ainda não estará completo. Como diz o cacique, eu sou nova no movimento e na luta. Enquanto eu não ver cada mulher falando por si, minha luta não acabou”, conclui.

 

Sobre o Voz das Mulheres Indígenas – Por demanda das mulheres indígenas, a ONU Mulheres Brasil colaborou para a elaboração do projeto Voz das Mulheres Indígenas, numa cooperação com a Embaixada da Noruega, com o propósito de apoiar a incidência política. O projeto tem como objetivo identificar pauta comum de atuação política, norteando-se por cinco eixos: violação dos direitos das mulheres indígenas; empoderamento político; direito à terra e processos de retomada; direito à saúde, educação e segurança; e tradições e diálogos intergeracionais. O processo de coleta de informações e resposta ao questionário será concluído em fevereiro de 2016. Mulheres indígenas interessadas em colaborar, podem entrar em contato por meio do e-mail: mulheres.indigenas@unwomen.org

Mobilização das indígenas – As primeiras organizações de mulheres indígenas surgiram na década de 1980: Associação de Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro e Associação de Mulheres do Distrito de Taracuá. Contribua, resgatando o histórico dessas e de outras organizações de mulheres indígenas existentes do seu povo, estado e região.

Povos indígenas no Brasil – Conforme o censo de 2010, cerca de 900 mil indígenas vivem no Brasil. Destes, 450 mil são mulheres e têm menos de 22 anos. A população indígena brasileira está dividida em 305 etnias que falam 274 línguas.

Confira as entrevistas em vídeo:

Andreia Lourenço – Povo Guarani Nhandewa |Paraná

Iara Esmínia – Povo Wasso | Alagoas

Maria Leonice – Povo Tupari | Rondônia

Simone Eloy Amado – Povo Terena | Mato Grosso do Sul

Sônia Guajajara – Povo Tenetehara| Maranhão

 

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